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A História de Joaquim

Nos primeiros anos da década de 1970, eu era diretor de uma financeira de crédito imobiliário, ligada ao antigo BNH. Na época, eu era um verdadeiro paradoxo: recém saído da universidade, com lutas estudantis e sindicais no meu currículo, eu fazia parte de um sistema capitalista ganancioso e corrupto. Eu era uma estrela emergente. Como executivo, eu tinha quase toda a liberdade na gestão da coisa dos outros. Em terra de cegos........ Usando dessa liberdade, dei guarida a meia dúzia de companheiros cassados e perseguidos políticos, fartos na época. Um deles foi o Joaquim. O Joaquim era um advogado, recém formado em Minas Gerais, preso e perseguido naquele estado, por sua participação política. A tal ponto sua vida profissional ficou comprometida, que só lhe restou sair de B.H. Na empresa que eu dirigia, ele foi trabalhar com outro advogado, de idade avançada, brilhante jurista mas, politicamente, um grande reacionário. Mas o Joaquim administrou muito bem a divergência política. Todos gostavam do Joaquim na empresa. Ele era aquele tipo de mineirin, magrin, baixin, alegrin. Depois de um ano, retornou a B.H. para casar e voltou ao trabalho. Repentinamente, um dia, o Joaquim sumiu. Saiu numa sexta feira e não voltou ao trabalho na segunda. Depois de alguns dias de sumiço, fomos ao pequeno apartamento onde morava com sua mulher, e o zelador, também preocupado, nos informou que o Dr. Joaquim tinha saído no domingo, no fim da tarde, no seu fusca, com a mulher e dois amigos e não mais apareceu. Todos ficamos preocupados, e, depois de consultas nos órgãos adequados, não tínhamos nenhuma informação do Joaquim. Depois de mais de 15 dias, o Joaquim aparece. Adentra minha sala, senta-se na poltrona à minha frente e, já de imediato, começa a chorar convulsivamente. Pedi a minha secretária que trouxesse um copo de água. Eu aguardei até essa primeira emoção passar. Depois de acalmado, Joaquim disse: amigo Velasco, estou vindo para pedir desculpas e a minha demissão. E, eu, surpreso, perguntei o que havia ocorrido. Ele me contou. No sábado à tarde anterior ao seu sumiço, dois companheiros do Joaquim, que continuavam na luta política em B.H., apareceram no apartamento, pedindo para lá dormirem e que, no dia seguinte, Joaquim os levasse à Rodovia Fernão Dias,onde companheiros que vinham do Rio de Janeiro, os apanharia para levá-los a B.H. Assim foi. No domingo à tarde, Joaquim e sua mulher levaram os amigos ao local combinado, lá os deixando. Voltando para casa, foram presos ao final da Rodovia Dutra, próximo à Marginal do Rio Tietê. Ele e a mulher, dentro do camburão, foram levados ao DOI-CODI, na Rua Abílio Soares, próximo do Parque Ibirapuera. Joaquim foi torturado, apanhou bastante e confessava apenas o que sabia. Informava que deu guarida aos amigos e apenas os havia transportado à rodovia. Uma das torturas mais doloridas psicologicamente era quando sua mulher, nua, era mostrada diante de sua cela. Os companheiros de prisão desviavam os olhares, mas os torturadores praticavam os mais rasteiros gestos e atos que a faziam sofrer de maneira brutal. Chorava copiosamente, tentando cobrir suas vergonhas. Além disso, sua mulher tivera paralisia infantil e uma de suas pernas ligeiramente afetada a deixava mais ainda impactada e sofredora. Assim passaram os cerca de 15 dias, até que foram soltos. Por tudo o passado, Joaquim entendia que, também em São Paulo, estava definitivamente marcado. Tentei demovê-lo, mas foi impossível. Voltou para B.H. Soube depois de algum tempo que sua mulher havia contraído um câncer fulminante e veio a falecer. Certamente aquela profunda vergonha contribui para isso. Há teorias de câncer em função dessas dores, desses distúrbios psíquicos. Do Joaquim nunca mais tive notícia, para minha tristeza. Fica, assim, registrado meu depoimento de experiência de vida. E fica, sobretudo, a mensagem para esses gorilas que, em festa com o capitão eleito, pedem a volta daquele tipo de arbítrio.


 o MANIFESTo DE LAURO:

 

Lauro Velasco é economista formado pela FEA-USP, mas também é historiador de mão cheia, administrador, educador e auto didata em uma gama de atividades, além de um grande pensador político e social.

 

Nesse espaço iremos abordar assuntos, temas, histórias com um enfoque social e político, mas ao mesmo tempo com uma linguagem simples e fácil de ser entendida e disseminada.

 

E com  esse Manifesto iremos trazer a tona assuntos espinhosos, mas com um tempero bem brasileiro.....

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