Uma Crônica à minha Mulher

Conheço minha mulher há quase 60 anos. De casados, temos mais de 53. Minha mulher tem manias de rainhas. Foi Rainha do Rádio em Marília, na década de 1950, no City Bank Club, na década seguinte e adora filmes de rainhas. Era, de fato, uma linda mulher. Ainda é. Por isso casei-me com ela. Ao longo de nossa vida, vejo-a grávida de nossos filhos, dando-lhes a vida, deles cuidando até alçarem voos próprios pelo mundo; vejo-a, também, ajudando a criar nossa neta e a ela dispensando o mesmo amor e carinho. Durante boa parte de nossas vidas, ela só cuidou de todos nós. Depois, já mais liberta, se dedicou à arte. Seu sonho de ser cantora, como fora na meninice, não se realizou. Mas se tornou uma excelente atriz de teatro, de cinema, de peças de publicidade e, ultimamente, assumiu até a locução de comerciais. Tudo isso, sob o nome artístico de Neusa Velasco. Durante anos, além do trabalho e dos estudos, assistiu o marido, eu mesmo, a andar pelas ruas, em partidos políticos,e sindicatos, gritando "trabalhador unido jamais será vencido", Diretas Já" e outros bordões quixotescos e utópicos que traduziam minha luta. Nunca me censurou. Viu-me ficar bem de vida, depois quase pobre, depois quase enriquecer e, depois, voltar a uma vala comum. Para ela, deve ter sido difícil essa gangorra, pois saiu de um lar muito modesto e com carências. Nunca nada me cobrou ou reclamou, num gesto de solidariedade entre companheiros. Agora estamos vivendo, juntos, as incertezas dos dias de hoje. Algumas noite atrás, adentrou em nosso quarto, onde eu estava lendo um livro, e, tal qual numa interpretação dramática, disse-me: Bi, assim ela me chama, acabei de assistir uma entrevista de um cientista e ele me convenceu de que aquele mundo em que vivemos, há duas semanas atrás, não mais existirá, depois dessa pandemia.O mundo será outro. A síntese dessa angústia era: o que será de nossos filhos e de nossa neta, nesses novos e escuros tempos? Conosco ela não se preocupava. Sem esperar nenhuma resposta, saiu do quarto Depois dessa carreira tardia nas artes, sua veia política desabrochou. Não leu clássicos do marxismo, poucos livros de história, mas aprendeu na dialética das peças teatrais os caminhos do humanismo. Enquanto eu perdia boa dose de entusiasmo político, ele me substituía nas contendas. Vejo-a na janela de nossa sala, no sétimo andar de nosso prédio, com vista panorâmica da cidade, com uma panela na mão e uma colher na outra, usando aquela voz da outrora cantora, para dar um contundente grito, FOOOOORA BOL-SO-NA-RO. que ecoa pelos vales da Vila Madalena. Repete o grito e mantém a bateção da panela. Depois, repentinamente, passa a mão nos cabelos brancos, vê-se um pouco de suor na face rosada, desaba no sofá, pega um leque, se abana e diz: Ufa! que calor. É a menopausa, eu concluo, sem nada dizer. Por que escrevo estas linhas para minha mulher? Porque, hoje, 02 de abril, ela completa 76 anos. Foi minha forma de homenageá-la . Não é meu hábito dar presentes, resistindo aos apelos do consumismo e da hipocrisia social. Também, não poderei abraçá-la ou beijá-la, eis que o vírus nos ameaça. Sei, no entanto, os presentes que gostaria de receber: acordar hoje, com a notícia de que o vírus foi embora e que alguém SENSATO passou a ocupar o lugar do capitão eleito e de seu vice. O primeiro por impedimento decorrente de loucura e ambos por apologia aos golpes de 1964 e 2016. Certamente, esse cenário daria a ela a certeza de que a esperança, aquela fugitiva da Caixa de Pandora, foi capturada e colocada, novamente, no seu lugar. Como é direito de cada um ter seus sonhos e suas utopias, sem precisar pagar impostos, retrato os presente ideais para ela. Parabéns Dona Neusinha. Que seus desejos e sonhos se cumpram, se não for de imediato, pelo menos com a gente ainda vivo. Você é algo inacreditável, vale dizer, aquilo em que quase não se acredita existir. Dia 02 de abril, dia de seu aniversário, nós, a família, não sabemos como agradecer.