O Reviver de um Pesadelo
Noticia-se que o capitão eleito irá, no dia 31 de março, dia do golpe histórico de 1964, homenagear os militares e civis, que fizeram parte desse golpe e posterior repressão aos adversários políticos da época. É de uma insensibilidade absoluta e de uma incoerência plena: como se pode comemorar o rompimento com o estado de direito? Comemorar um golpe? Comemorar o rasgar de uma constituição, por quem tinha a obrigação de protegê-la? Comemorar um ato, que na sua essência, foi uma traição? Essa questão, apesar de não plenamente resolvida por ocasião da lei da Anistia., está um pouco adormecida na alma dos brasileiros. Não deveria estar. Nos dias de hoje, passados mais de meio século, grande parte dessa história vai se apagando, um pouco anestesiada, porque a maioria dos atores, que viveram aquela tragédia, vai morrendo. Mas, a morte dessa gente não poderá apagar essa página negra da nossa história. Agora vem o gênio, o mito e reabre as feridas. O momento histórico de 1964 e seus 21 anos seguintes, não devem ser esquecidos, mas NUNCA para homenagear torturadores, carrascos e forças militares traidoras e covardes. As forças armadas brasileiras e demais órgãos de segurança civis contavam com mais de 400 mil pessoas, plenamente armadas, treinadas e ideologicamente alinhadas à direita norte americana. Lincoln Gordon, embaixador norte americano na época, e seus sucessores, ali estavam para supervisionar o golpe. Numa guerra desigual, combatiam uma ou duas dezenas de milhares de militantes do outro lado, com toda carência de recursos. Contrariando o espírito de Caxias, tido como conciliador, essas forças militares foram tomadas de um espírito odioso, vingativo e repressor, resultado da doutrinação anticomunista. Jamais agiram com espírito de temperança e tolerância, mas sempre com o espírito da morte, do extermínio do contrário, usando qualquer método a seu dispor, mesmo se tratando de gente do mesmo solo pátrio. Foi uma luta desigual, covarde, que nada enobreceu o vencedor, ao contrário, envergonhou-o. Conhecendo algumas vítimas pessoalmente, e tendo notícia da forma como foram mortas, não há porque se vangloriar de nada, nem receber homenagens. Como homenagear alguém que praticou um ato covarde, desigual? Nada de nobre foi praticado, ao contrário, prevaleceu a vilania. Houve vítimas, tudo documentado e até livros publicados, que depois de baleadas, sem mais nenhuma possibilidade de reação, foram ainda torturadas, depois mortas com tiros na testa e jogadas nas montanhas que cercam Belo Horizonte, no caminho para Itabira. Tive amigos e amigas estudantes que, por bem conhecê-los e com eles e suas famílias ter convívio, certo estou que, em suas almas, nada poderia conter de maldade e que a eles pudéssemos atribuir qualquer perigo à ordem estabelecida. Vejo, ainda, a imagem de cada um deles e suas características de pessoas humanistas, apenas lutadoras por um ideal. Participaram comigo de debates acadêmicos, sequer sabendo manusear um revólver. Tive dezenas de conhecidos, até meus funcionários, alguns mortos, outros esbofeteados e torturados, que ficaram com sequelas irreversíveis, de corpo e de alma, por pura insanidade do repressor. Um deles, meu amigo, jornalista do Jornal da Tarde, caminhava numa rua, quando o encontrei. Parecia um zumbi, depois de tanta tortura e não me reconheceu. Outro, mutilado para sempre numa das pernas, que, para caminhar tropegamente não mais dispensava sua bengala, pelo mesmo efeito da tortura. Encontro-o sempre na PUC, em dias de eleições, com dificuldade para subir as escadas. Depois, tive conhecimentos de muitos mortos, sem nenhuma chance de defesa, enterrados em vários cemitérios clandestinos e outros tiveram seus corpos incinerados em usinas de açúcar, no mais "nobre" estilo nazista de fornos crematórios. Quem não se lembra das vítimas da ditadura, que geraram revoltas e movimentaram multidões, vítimas concretas e desparecidas, que iam desde o operário ativista, o jornalista, professores, sociólogos, os freis dominicanos, os músicos, os artistas, todos os cassados da resistência, todos os ASILADOS? Quem não se lembra dos DOI-CODIs de todo o país, do DOPS, do Delegado Fleury, do coronel Erasmo Dias, o incendiário covarde da PUC, os invasores de teatros e tantos outros? Poderia ficar aqui escrevendo algumas páginas a mais e nunca teria esgotado o rol das barbáries, dos crimes e de seus agentes Neste texto, apesar de longo, tudo é reducionista. Impossível abranger o universo dos eventos ocorridos, em todos os seus matizes e em todos os rincões deste país. Dirão que, do outro lado, soldados da ordem teriam, também, sido mortos. Se contados, não dariam mais que os cinco dedos de uma mão, o que comprova uma enorme desproporção na luta. Portanto cara pálida, homenagear o que, porque, para que? Reabrir essa ferida ainda não cicatrizada é um desserviço enorme, além de uma falta de senso e humanidade. É desconstruir a frágil reconciliação e aguçar, novamente, uma dor ainda latente. É ser parteiro de um novo ódio desnecessário. Parabéns capitão. Você é realmente um mito. Comemorar um GOLPE, comemorar um apunhalar do direito constitucional, comemorar o rompimento de uma ordem institucional, e esquecer os DANOS está bem sintonizado com tudo o que você representa.