Os Sertões
Como costumeiramente faço, releio livros importantes. Renovo minha memória, já com nuvens do esquecimento. Terminei de reler "Os Sertões", de Euclides da Cunha e da "Guerra no Fim do Mundo", do peruano Mario Vargas Llosa. Ambas tratam da mesma tragédia brasileira, ocorrida nos sertões da Bahia, ao apagar das luzes do século XIX, menos de dez anos após a proclamação da República. Fiz uma leitura de comparação de conteúdo. Conclui-se, por qualquer dos livros lidos, que o tema deveria estar presente todos os dias, todas as horas, nas salas de aula deste país, para um pouco entender nossas raízes e injustiças sociais. Euclides da Cunha, engenheiro, é um cartesiano, frio, mais preso às atitudes, dores e fracassos das forças armadas, do governo recém republicano, justificando-as. Trata Antônio Conselheiro e seus seguidores como bandidos, cangaceiros, fora da lei, sem nenhuma análise de natureza sociológica ou política para explicar, minimamente, aquela aberração. Essa postura é plenamente explicável, na medida em que esse engenheiro se presta a fazer o papel de correspondente de guerra de um dos jornais, historicamente, mais reacionários deste país, " O Estado de São Paulo". Euclides faz questão de usar um vocabulários restrito, elitista, seleto, como se palavras difíceis pudessem traduzir um nível superior de cultura e uma síntese de classe. Uma pena. Vargas Llosa é muito mais humanista. Sua obra se sustenta em personagens, vários deles de rica alma, traduzindo o drama de Canudos como um capítulo humano das desgraças de um povo, seguidores de um fundamentalista extemporâneo. Apesar de Vargas Llosa ter, depois dessa obra e do Nobel, se transformado num reacionário político, esse livro é de um humanismo gigantesco. Certamente, o peruano homenageia Euclides da Cunha, rotulando um dos seus personagens como um jornalista míope. Essa leitura comparativa leva-me a uma única conclusão: as forças e as leis constituídas sempre estiveram a serviço único da Casa Grande. Esse foi o panorama de Canudos: há que se destruir esse monstro, mesmo que ele seja resultado da síntese da miserabilidade de uma nação e de seu obscurantismo e que todos tenham uma culpa desse panorama dramático. Não pode haver complacência com aqueles miseráveis, moradores de uma favela gigantesca, pobre e obscura. Essa análise comparativa reflete tudo sobre este país e irá nos levar, inevitavelmente, à conclusão de que nada mudou. Há que se destruir tudo que possa dar consequência ao grito dos desesperados. Calar os miseráveis. Há, hoje, milhares de Canudos neste país; houve uma farta reprodução daquela miséria. E continuam combatendo esses desafortunados, com tanques, fuzis, generais, soldados, armados ou não, como diria Geraldo Vandré. Até nos altos tribunais, lá estão os algozes, defensores do estado vigente, cegos à realidade que os cerca. Que morra Antônio Conselheiro, ou que continue preso, e não venha atrapalhar o sono tranquilo e histórico dos senhores.